quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Zeffirelli (s): esplendores de uma diarréia

Vendo vídeos de ópera mais ou menos manjados, dois Zefirelli: uma Traviata com Stratas e a Tosca no Covent Garden com Callas e Schipa e... é incrível. O homem conseguiu acabar com duas grandes atrizes! Noção nenhuma de décor, gesto, timing. Noção nenhuma de mise en scène. O prólogo da Traviata com uma estertórica Stratas, então, é hilário: a rememoração dos tempos passados, quando ela, natimorta, sai do quarto ( para espanto de todos, inclusive dos carregadores, que já se apressavam em carregar suas porcelanas de Sèvres e bibelots de Colonne), encara com um ar sedutoramente vampiresco um jovem carregador- deve ter se julgado a Duquesa de Guermantes no Le temps retrouvée, imaginando-se ainda a rir com todos os dentes, seduzindo os incautos.
Contraplano do cara, seduzido pelo cadáver!! plano dela, ainda mais lívida, uma Musidora do Além Túmulo. Então, golpe de gênio: zoom!. Zoom numa tela ( Fragonnard? Tiririca?) que representa os esplendores de um salão Louis Philippe, reaça até a medula certamente, kitsch até o cerebelo... o zoom.. então, fondu sobre o quadro e... eis-nos no salão onde Violeta um dia brilhou... digno do Leopardo. Contracampo de Alfredo à porta, sôfrego ( é Placido Domingo). E La Stratas começa a cantarolar, mais mortiça do que nunca: Folie!! Folie!!

O horror: zoom e fondu para uma infanta defunta, e nada pavana!

... olha, o único sopro que me sugere o nome deste cara ( zéfiro) é o de um seco e ácido peido.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Fréhel

Fréhel- minha devastada, devastadora Fréhel- numa sequência impressionante de Roman d'un tricheur, do Sacha Guitry. Impressionante sobretudo depois que li Conversações com Manoel de Oliveira, e numa entrevista o mestre dizia que tivera a impressão de que a moça que cantava esta canção era muito jovem, até ver que era uma senhora. E é isso mesmo: a outonal miséria do canto de Fréhel passava-nos sempre a impressão de estar no limiar da primavera; de que, sim, os homens vão continuar a corneá-la, a bebida a castigar seu fígado, os trocados a minguarem, os bares piores e as fodas nulas, o câncer vingar e o cabelo cair, sim, c'est la vie... quoi? Uma arte Irrepetível, imarcescível.

Qualquer cançoneta de Fréhel, da Java Bleu à Les amants de la Seine, esporra este paradoxo trágico: são o auto-de-fé de quem espera um mundo no próximo instante- o amante que a paquera na mesa perto do balcão, uma gorjeta na mão titubeante de um gagá, um bar menos cais e latrina Pompidour- e o Requiem de quem sabe que celebra, aqui, agora, a féerie de sua própria dissolução.

http://www.youtube.com/watch?v=Y8fhtkYKY-Q

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eu pensava que só Emma Kirkby era capaz de nos comunicar o êxtase de um serafim sob o ósculo da Eternidade, cantando Monteverdi. Mas há uma outra intercessora, até então insuspeita para mim; sim, não estávamos tão sozinhos e desamparados quanto pensáramos: a desbocada, gaiteira, fuleira, a Mae West do canto lírico, Cathy Berberian canta Monteverdi sob a batuta do ranzinza Harnoncourt. Evanescência, incandecência, fremência, jouissance da clitoridiana coloratura.

Aqui:

http://singersaintsrecords.blogspot.com/2010/08/cathy-berberian-sings-monteverdi.html

domingo, 20 de dezembro de 2009

Spinto em exílio




Teresa Stratas ( a spinto cadente) gravou um disco de árias vagabundas de Kurt Weill. Não exatamente árias: valsas, cançonetas, Clairs de lune. Graças a Odin, nada brechtiano: a precisão e a percussiva parataxe atonal das canções de Brechet by Weill cede lugar aqui a encenações em si bémol; de certa forma, igualmente enformadas por um Gestus harmônico, um indicar uma ação dramática, e não exatamente mimetizá-la; mas de outra maneira: são comentários ( como em Brecht) sobre momentos elegíacos, e geralmente de um elegíaco fanado e pourrri, que mataria de pudor a minha devastadora (e devastada) amada Fréhel.


São vulgarmente insossas, petulantes, sincopadamente mirradas, floreios-chanchada, soturnamente impotentes, enfim: burlescas. é um pastiche, e como todo pastiche, é credor do que nega: há uma melancolia de exilado nessas canções que sugerem um outonal club de Basie e heroína concentrada em Nova York e os parques à beira do Sena, frequentados pelos dandys frígidos pós-68 de Garrel e Eustache.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aos poucos diletantes que me lêem por aqui. Ouçam, por favor, esta pérola de ágata incrustada na década dos 20,a década menos apta- a década do expressionismo- a correspondências, a festins outonais, a Misereres sentimentais, a estertores opalinos, a circunavegações místicas pela nau do abandono e da desilusão, este escavar e este evacuar o quintal do Sturm und drang, castrá-lo e seviciá-lo com doses de opróbrio erótico e expiação masoquista, longo lamento de estrela cadente num deserto de harmonias retilínias e viril contraponto; enfim, ouçam a Georgette Frozier-Marrot cantando Berlioz; comparem este lieder com um spititual cantado por Marian Abderson.

http://cantanellas.blogspot.com/2009/10/georgette-frozier-marrot-adieu-fiere.html

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

La Stratas/ La Ewig





Em tempo: o Lulu com a Stratas ( Teresa), dirigida por Pierre Boulez, é de matar de inveja a galinha sefaradita Maria Ewig ( que nos deu uma Salomé com transtorno bipolar e fogo no absinto, encenada por Peter Hall). Deve existir algum vírus responsável pela coloratura, esta arte de volutas incandescentes, de miomas em fá. A coloratura é um cataclisma do útero; sues abalos sísmicos são os peidos da Eternidade ( bem, do Eterno feminino ao menos, tara demodé), se esta se desse ao luxo de exercitar-se ainda em linguagem, em se exprimir. Mas ela já não precisa falar/peidar ( a oposição é psicanalítica e trágica também, a impossível resolução se situa em algum ponto entre uma litania cantada por Om Kalsoum e um disco de Bach, girando indefinidamente sobre o contraponto da dissolução, numa tarde em Treblinka). Não, a Eternidade não nos dá o ar de sua graça, e quando se digna a tal, já não há testemunhas para o seu esplendor. E se houvesse espectadores para esta noite de gala, seríamos nós a noite, enfim engalanados pelo manto espesso do Oblivium: fulminação.
O link para download abaixo:



http://www.avaxhome.ws/music/classical/DG463617_Lulu.html



Spontini

Spontini é um dos menos conhecidos mestres do bel canto. Talvez por não ser considerado exatamente um mestre, talvez por sua música respirar menos o agônico operístico que o capitoso camerístico; talvez pela Vestale, sua ópera mais famosa, ser um fruto temporão de Berlioz; talvez por sua excessiva condescendência para com Meyerbeer, grave e aveludado pastor de correspondências- Luto e Evocação, Desalento e Amor, todos os seus contrapontos pranteiam o instante natimorto, as volutas de sua música se perdem no zéfiro da tísica.


Demasiado tarde, demasiado cedo. Ele antecipa o féretro do romantismo, ou o romantismo como féretro; o romantismo, meu inimigo de morte, o puto que combato, por vislumbrar nele o meu gêmeo incestuoso, meu petit pan de mur jaune recalcado, o reservatório dos meus fantasmas de pederasta impune (impunemente!), de diletante, de bricoleur...o romantismo, cujo enterro Wagner vai celebrar com pompas necrófilas, cujas exéquias de Musa catarrenta e tricolor Poussin vai retratar no Hymenaus travestido durante um sacrifício a Príapo... Odes, necrofilia, masoquismo... Tu che invoco! Só para terem uma idéia de como Berlioz é , ao lado do ensandecido Spontini, apenas um cristal crocante e quebradiço. Abaixo, um link da morosa Janet Baker cantando Les Nuits d’eté (pior: a sonambúlica, a lexotânica Le spectre de la rose), e comparem com o escrínio precioso de sangue e vísceras, o milagroso coágulo de treva, a hóstia expiatória da dor e do desamparo ( lembrei de minha adolescência!, maldita seja!) que é Tu che invoco ( claro!), ária que se poderia, apenas num momento de hemiplegia fatal dos neurônios que me restam, comparar- pelo esmero harmônico, pela linha que se escande e se suspende no infinitivo de seu último suspiro.

Primeiro a Baker. Doppo, La Callas, que não tem pra outra, mesmo que já meio pé na cova ( a gravação é de 1958, com Rescigno em Paris, e a voz da coitada já não era o que tinha sido em 1954, com a imortal Violeta Valéry de Serafim).




http://www.youtube.com/watch?v=kJzvqX_phcE



http://www.youtube.com/watch?v=gaFI0f-ieYI



http://www.youtube.com/watch?v=HK_RFPYnauU






segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Handel, que horas são?, Puritanos e Preciosas

Se eu tivesse de contrapor o tempo escatológico ao tempo vulgar e imanente de todos os dias, eu definiria essa oposição por um exemplo. No tempo mundano, perguntamos a um sujeito na rua: Que horas são? No tempo escatológico, indagamos , na mesma rua e ao mesmo sujeito: Você já salvou a sua alma? É este tempo Absoluto, este tempo estigmatizado unicamente pelo limiares do Fim e do Princípio, tempo vertical e interpolado por todas as dimensões subjacentes às Escalas da Ordem e da Eternidade, que Handel representa em sua música.O profetismo, dom e opróbrio característico deste tempo, é o limiar de sua experiência histórica ( se História há). Apreendemos ( e somos apreendidos por) os ultrasons, as sub-ressonâncias, os apelos intersticiais, as finíssimas cicatrizes do Sempiterno. Aqui, nada de meio-termo ou grau: enterrados no Eterno até os ossos, acumpliciamo-nos com os atributos dos anjos e dos mitos primevos: a intangibilidade, a implausibilidade, a imarcescibilidade e a inelutabilidade de tudo o que jaz em nós, desde sempre e para além de nós. ( Excelsus Dominus).
Eis a grande descoberta de Handel- que são os óbulos do vidente às suas vozes interiores: Com Rauco Mormorio, Dull Delay in Piercing, Scenes of Horror. Esqueçam o verso seguinte: For now is Christ risen from the dead, the first fruits of them that Sleep; o que deve ficar- o que resta- é o início do versículo: esta concupiscência da carne estagnada, que aspira à podridão e ao caos como o invólucro quintessencial da Contemplação de Deus.
Esqueçam também o que disse acima; ouçam apenas a trompa de caça Maureen Forester, contralto magnífica. Nela, a profundidade e amplidão abissais –assim como o preciosismo, a untuosidade, o esplendor fúnebre e o o entusiasmo cromwelliano da Puritana - da música sacra de Handel encontram uma rival à altura.
No link, Lynne Dawson, modesta e circunspecta como um querubim, canta I know that my redeemer Liveth.

http://www.youtube.com/watch?v=qtU1c5JZf0k

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Puccini, o impressionista

Muitos chatos, geralmente tarados por Verdi, dão de ombros: Puccini, música menor. Música sentimental burguesa, trinados de cristal e alcova, Sèvres e chá das cinco, etc.
Puccini é um impressionista da ópera. Vejamos o sublime Vogliatemi bene, dueto da Madame Butterfly, perversão/ recriação da melodia infinita wagneriana no universo do melodrama estertórico sala-e-cozinha: aniquilação de uma geração inteira no êxtase da hemoptise e da água –furtada.
Simulação vertiginosa do espaço imaginário- a face de Jano do teatro social - pelo travesti que o habita, e cuja função é decalcar-lhe os ritos, amplificar-lhe os ritmos, nuançar-lhe a pressão e estimular-lhe o caráter abrasivo e excitante.
Em Puccini, vale a regra masoquista: o gozo ou a dor não diferem em natureza, mas na pressão exercida. O estímulo do prazer a meio caminho entre a transgressão e a regra, sua face porosa e intercambiável. No link, Kabaivanska, talvez a mais sublime Butterfly do nosso século e Nazzareno Antinori como um marmóreo Pinkerton na Arena de Verona. Ouçam também a gravação com Callas e Di Steffano, regida por Serafin, talvez uma versão mais exuberantemente “wagneriana” do dueto.


http://www.youtube.com/watch?v=v2oNJRTkonM

domingo, 21 de dezembro de 2008

Strauss, a canção do suicídio, Janowitz

Nunca se gritou tanto na ópera quanto Salomé, nunca se arquejou e se gangrenou tão maníacamente a matéria da voz, as margens das coxias e dos tímpanos . Mas nas quatro últimas canções, e sobretudo neste arco debruçado sobre o dorso da dissolução- representada essencialmente no uso adstringente wagneriano- que é Friüling, temos uma nota nova, para além e para aquém do gozo masoquista que é o spleen da decadência; um conjunto de notas, na verdade. Esta nota é exprimida naquela epígrafe- ou epitáfio- que Holderlin apõe a seu Empédocles: No perigo- na dissolução- reside a salvação. Na agonia, o anjo de Friüling encontra a reconciliação. No face a face com os limites, o apaziguamento da vontade, voto schopenhaueriano; na dizimação e na entropia, a expansão cósmica e a luxúria do Nada. Esta face imprevista- ma non troppo- da decadência de Strauss é o suspiro do moribundo- suicida- perante o mundo que finalmente se digna a abandoná-lo.
No link abaixo, Margaret Price numa versão menos cósmica e mais soturnamente acadêmica das obras-primas de 1948. Mas tentem ouvir Janowitz cantando isso e entenderão o significado da expressão canto do cisne.

http://www.youtube.com/watch?v=P1AvXOXhjmY

sábado, 6 de dezembro de 2008

No link, la Bartoli canta ( só canta, como se já não bastasse! ) a sublime ária de concerto Ch’io mi scordi di te.
http://www.youtube.com/watch?v=AqK_gbnRmyY